domingo, 2 de novembro de 2008

Escola Base: os culpados foram os que queriam culpar

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É comum que se faça analogia há algo que marcou a História ou que de alguma forma seja modelo para explicações teóricas em todas as áreas da vida, seja ela do dia-a-dia, ou de contexto aplicado a situações específicas. Há sempre um ponto referencial pelo qual se permeia os pensamentos e se traça paralelos. É assim que Bill Gates é visto como o célebre da informática.

É assim que se coloca o atentado nuclear a Hiroshima e Nagasaki como referência para massacres bélicos. É dessa maneira que se comparam todos os novos talentos do futebol com o ícone-mor, Pelé. E é também dessa forma que o caso Escola Base torna-se a chave comparativa para os escândalos de abusos jornalísticos no Brasil.

Uma mãe, em um ato precipitado, denunciou possíveis abusos sexuais sofridos por seu pequeno filho, que estudava na Escola Base. Até então, nada houvera contra o educandário, os casais de donos sempre foram vistos com boa índole, e a educação oferecida era exemplar. Inclusive nos últimos tempos, a escola havia crescido o seu número de alunos de forma muito grande. A polícia soube do fato pelo boletim de ocorrência, e para pagar uma “dívida moral” com a imprensa, resolve chama-la para fazer a cobertura do caso. Isso aconteceu por que semanas antes, um policial militar havia sido preso, e a polícia tentou acobertar o caso, não permitindo a divulgação pela mídia.

Com certeza pedofilia é um dos assuntos que mais repercutem no senso-comum pela barbaridade dos crimes que geralmente são cometidos. Dessa forma, a imprensa se aproveitou da situação para construir toda uma trama, fazendo com que os boatos drasticamente se tornassem um verdadeiro festival de matérias bombásticas lançadas em todos os meios de comunicação — de jornais impressos, rádios, até o jornal televisivo mais assistido no país: o Jornal Nacional da Rede Globo.

Os donos da escolinha tornaram-se a principal atração dos programas, como animais que são perseguidos pelos olhares dos visitantes em um zoológico, lá estavam eles, na mira de todas as câmeras, sem poderem se defender, atrás da jaula construída simbolicamente pelos poderes coercitivos da polícia e da imprensa. Infelizmente, sem a apuração devida, as matérias já os apontavam como criminosos, instigando uma aversão popular, antes mesmo de um julgamento, antes até mesmo de alguns envolvidos prestarem depoimento na delegacia.

Nesse circo dos horrores que foi montado em volta da pequena escola infantil, os fatos mais esdrúxulos possíveis viriam a ocorrer. Um gringo naturista foi acusado de ser um dos grandes mentores do plano diabólico por que emprestava sua piscina para crianças nadarem, e possuía fotos de adultos nus em praias de nudismo. A interação de uma criança com uma tartaruga de jardim foi creditada como um reconhecimento da área onde supostamente houvera o crime. O veículo de transporte das crianças foi intitulado de “Kombi de orgias do maternal”. Números de casas foram trocados propositalmente para que pistas fossem tidas como fundamentadas. Acusados foram presos sem mandatos de prisão. Policiais que bebiam após o expediente foram vistos com indignação. E muito, muito mais histórias que só não parecem mentira porque estão todas retratadas nos arquivos jornalísticos e policiais da época.

Talvez anteriormente a março de 1994 fosse passível de apenas utilizar-se do caso Watergate, ocorrido nos EUA, para exemplificar a forma mais duvidosa pela qual alguns comunicadores fazem-se agentes de trabalho. Entretanto, mesmo com as incríveis façanhas de Carl Bernstein e Bob Woodward na redação do jornal The Washington Post na década de 70, o resultado foi plausível para o veículo, já que apesar de denúncias terem sido feitas às cegas, o esquema investigado era verdadeiro e os culpados foram desbancados.

Em Watergate, os dois jornalistas movidos por revelações de uma fonte que agia em anonimato — o Deep Throat, ou Garganta profunda—, investigavam o envolvimento da Casa Branca, mais particularmente da pessoa de Richard Nixon, o presidente da república, com a invasão do edifício sede do Comitê Nacional Democrata. As matérias, apesar de duvidosas, foram publicadas periodicamente, pelo esforço dos repórteres que investigaram a fundo tudo o que estava ao alcance deles. E sim, Richard Nixon foi investigado e culpado, e foi destituído de seu cargo.

A questão é o que fazer quando toda especulação e denuncismo só encontram um desagradável culpado: o próprio autor do estardalhaço? Foi exatamente isso que ocorrera no caso Escola Base. Todos os acusados foram absolvidos, nenhuma prova foi encontrada, não houve incriminação de ninguém; entretanto, a imprensa teve que pagar caro por seus atos. Ainda que as verdadeiras vítimas não tenham recebido, até hoje, suas indenizações por direito, a imprensa teve que se retratar e mostrar sua face mais obscura ao público — uma face vislumbrada pelo desejo de lucro a qualquer preço, com olhos sedentos por manter a atenção do público e com lábios sedentos por professar informações a qualquer custo.

Nessa memorável passagem, os repórteres, assim como os veículos a que representavam, tornaram um boato em um dos fatos mais repercutidos da época. Tudo por causa do utilitarismo em prol da curiosidade pública. “Se só esses acusados aí vão se prejudicar, tudo bem! Ainda temos toda a população do país em busca do que podemos oferecer como profissionais da comunicação!”, era o pensamento, mesmo que involuntário, da maioria daqueles jornalistas que acompanhavam dia após dia, um caso sem fundamentos, cheio de devaneios públicos, mas que trazia lucros a curtíssimo prazo.

Por causa dessa falta de responsabilidade e ética jornalística, eles até hoje conseguiram o nada honroso feito de serem referência como maus exemplos de profissionais — sendo estudados em Universidades como patologias infecciosas, que devem ser prevenidas a todo o custo. Quatorze anos já se passaram, mas as lembranças ficaram nos livros, nas teses, nos artigos, mas, sobretudo, no pensamento das vítimas diretas. Por causa da falta de decoro profissional famílias foram destruídas, pessoas sobrevivem à base de compostos químicos e traumas psicológicos, com medo de terem seus rostos reconhecidos, com transtornos de identidade e tantos outros problemas.

É interessante ressaltar que no Código de Ética do Jornalista aprovado pelo Congresso Nacional dos Jornalistas Profissionais no seu artigo sétimo diz: “O compromisso fundamental do jornalista é com a verdade dos fatos, e seu trabalho se pauta pela precisa apuração dos acontecimentos e sua correta divulgação”. Além disso, no artigo nono, está escrito: “É dever de o jornalista respeitar o direito à privacidade do cidadão”. Nesses recortes, vêem-se claramente as regras às quais os profissionais de comunicação precisam se pautar; entretanto diante das situações que a mídia se envolve é sempre controverso imaginar que no mercado capitalista selvagem em que vivemos seja possível o exercício da profissão de uma forma sadia, sem as corrupções descritas em casos como o da Escola Base.

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Lorena Gonçalves - 2008 / 2009 - Todos os direitos reservados.
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